123 anos para a igualdade e o relógio do racismo no serviço público

A política de reserva de vagas no serviço público federal completou uma década Segundo o Ministério da Gestão e Inovação, entre 2014 e 2020, o número total de servidores do Executivo Federal caiu de 624.095 para 599.852, uma redução de 3,8%, reflexo direto das políticas de austeridade fiscal que limitaram os investimentos em pessoal.

Nesse mesmo intervalo, ainda segundo a pasta, o número de servidores negros caiu levemente — de 234.175 para 233.898, uma redução de 277 pessoas (-0,12%). Já entre os brancos, a queda foi mais acentuada: de 362.818 para 347.310, ou seja, 15.508 a menos (-4,27%). Embora a política de reserva de vagas não tenha ampliado a presença negra em termos absolutos, os dados sugerem que ela exerceu um efeito protetivo sobre a permanência desse segmento no serviço público federal.

No que diz respeito ao orçamento destinado a vencimentos e vantagens — considerando os valores do mês de fevereiro de cada ano —, observou-se estabilidade com leve tendência de queda: 13,17 bilhões de reais em 2014 e 13,06 bilhões em 2020. Em 2014, os brancos — que representavam 47,51% da população brasileira — apropriaram-se de 8,58 bilhões, o que correspondeu a 65,16% do orçamento de pessoal. Já os negros — que compunham 50,94% da população — receberam apenas 4,04 bilhões, ou 30,69% do total. Em 2020, o padrão se repetiu: os brancos — que correspondiam a 43,34% da população — ficaram com 8,46 bilhões, ou 64,81% do orçamento. Os negros — já 55,38% dos brasileiros — receberam 4,17 bilhões de reais, o equivalente a 31,93% do total.

Embora entre 2014 e 2020 o número de servidores brancos tenha caído 4,27%, o orçamento destinado a esse grupo teve uma queda de 120 milhões de reais, o que representa cerca de 1,4%. A comparação entre os dois percentuais é reveladora: embora os brancos tenham diminuído em número, a perda de recursos foi proporcionalmente muito menor. O descompasso entre a queda de pessoas e a queda no orçamento evidencia que os brancos continuam recebendo melhores salários. 

A distribuição do orçamento de pessoal, sob uma perspectiva antirracista e comprometida com a reparação de séculos de exclusão da população negra do serviço público, deve seguir dois princípios fundamentais. O primeiro é que a composição do funcionalismo reflita a realidade racial do país — ou seja, que 55,38% dos servidores sejam pessoas negras não apenas no total agregado, mas em todas as carreiras, níveis e áreas do Executivo Federal. A presença negra precisa estar distribuída de forma igualitária ao longo da estrutura institucional, e não concentrada em funções específicas ou de menor prestígio. 

Se esse cenário fosse realidade em 2020, o número de servidores negros chegaria a 332.198 — um aumento de quase 100 mil ao registrados naquele ano. Já entre os brancos, o contingente deveria ser de cerca de 259.976, o que representa uma redução de aproximadamente 87 mil servidores. Os dados revelam uma distribuição racial profundamente desigual, a discrepância entre os dois grupos evidencia não apenas a sub-representação negra, mas uma distorção estrutural que aprofunda desigualdades históricas no interior do serviço público.

O segundo princípio deveria ser a igualdade salarial entre os grupos raciais. Em um cenário de plena igualdade, o grupo negro — maioria da população brasileira — teria acesso proporcional aos recursos destinados ao pagamento de pessoal. Isso representaria não apenas justiça distributiva, mas também reparação histórica por séculos de exclusão.

A projeção estimada do orçamento destinado a servidores negros indica um crescimento médio de 0,52% ao ano, enquanto o apropriado por servidores brancos apresenta uma redução anual de 0,23%. O ritmo é tão lento que, se a transferência orçamentária entre os grupos raciais continuasse nesse mesmo padrão, o país levaria 123 anos para alcançar uma distribuição proporcional à composição racial da sociedade.

A dificuldade do orçamento destinado a servidores negros alcançar sua proporção demográfica no total do gasto com pessoal revela o limite das políticas de ação afirmativa quando desvinculadas de estratégias de redistribuição orçamentária. O cenário de igualdade racial permanece distante — não apenas no tempo, como mostram as projeções de longo prazo, mas também nas prioridades efetivas do Estado. Se o orçamento de pessoal seguir sendo distribuído de forma desigual, com mudanças lentas e pontuais, isso indica que a política de reserva de vagas tem funcionado mais como uma porta de entrada do que como um instrumento efetivo de justiça orçamentária.

Para que a política de reserva de vagas cumpra, de fato, seu papel transformador, é preciso que ela vá além do acesso inicial e seja articulada a um conjunto de caminhos estratégicos e inegociáveis rumo à igualdade racial no serviço público. Uma dessas direções fundamentais é garantir o acesso de servidores negros a cargos estratégicos e comissionados, tradicionalmente ocupados por pessoas brancas e associados aos maiores níveis de remuneração, prestígio e poder decisório.

Outro caminho indispensável é o enfrentamento da segregação ocupacional, que ainda concentra servidores negros em funções de menor visibilidade e remuneração, mantendo esse grupo sub-representado nas carreiras de maior prestígio e melhores salários. Além disso, mesmo em uma mesma carreira, persistem desigualdades salariais associadas à titulação acadêmica. Por isso, é fundamental promover a formação continuada da população negra, com políticas que estimulem o ingresso e a permanência em cursos de graduação, mestrado e doutorado — títulos que têm impacto direto na progressão funcional e na distribuição dos recursos de pessoal.

Essas medidas são fundamentais para combater as distorções orçamentárias entre os grupos raciais, para promover uma redistribuição progressiva dos recursos públicos, coerente com a composição racial da sociedade brasileira. Sem o enfrentamento dessas desigualdades estruturais, a política de reserva de vagas arrisca ser esvaziada de seu potencial transformador. Em vez de promover igualdade, ela pode acabar apenas administrando a desigualdade, preservando os mecanismos que concentram orçamento, cargos e autoridade institucional nas mãos de poucos.  

Justiça racial no serviço público exige mais do que acesso: exige uma redistribuição real dos recursos, das oportunidades e do poder institucional.

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