Há um provérbio africano que nos ensina que: “Se muitos pequenos fazem muitos pequenos, o mundo será grande.” Penso ser impossível refletir sobre as ocupações, olhando para minha própria experiência, sem que seja mobilizado, de imediato, o sentido de coletividade. Naquele momento, cada estudante, ao se unir uns aos outros, construiu algo muito maior do que ele ou ela conseguiria sozinho. As ocupações nos lembram que não há saída política que não seja coletiva. A coletividade, entendida aqui como princípio filosófico, encontra no território sua morada e, na partilha do que é comum, seus sentidos de existir. No coletivo é que se ultrapassam os limites do que parece impossível, pois cada contribuição individual fortalece o movimento como um todo. Embora o poder do coletivo possa parecer sutil e gradual, sua força é imensa e capaz de gerar grandes mudanças. No coletivo encontramos força para imaginar e criar novos mundos.
A escola é esse espaço, em potencial por excelência, do coletivo. Quando consciente de sua ação política de transformação e organizada para essa finalidade, pode abalar estruturas, subverter lógicas de poder. E assim o fizemos com as ocupações. Certamente, não será apenas da sala de aula que mudaremos uma nação (BRANDÃO, 1986), mas posso afirmar que tampouco haverá qualquer mudança significativa que não passe por ela. O chão da sala de aula é terreno que pode assentar novos caminhos. Comecemos, então, por questionar seu significado, sua função social, para nós, filhos e filhas da classe trabalhadora.
O sentimento de fazer algo pela primeira vez — algo novo, radical e perigoso — faz o corpo todo arrepiar, o coração bater mais forte… faz você encontrar forças onde não sabia ter, palavras que até então não sabia nomear. Atravessado pela adrenalina e pelo êxtase de fazer parte de algo maior do que você, de alguma coisa que não tinha precedentes e, portanto, sem muita receita de como fazer, agarrado apenas na convicção de que estávamos certos, nós tínhamos razão. Éramos jovens, adolescentes vibrando e pulsando revolução, escrevendo a nossa própria história, abrindo um novo capítulo das histórias de luta da nossa gente. Fazendo valer as palavras de Chico Science e Nação Zumbi (1994): “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”.
Começo assim, na tentativa de chegar até vocês, leitores, o turbilhão de sentimentos e emoções que se passa em um estudante que ocupa sua escola. Certamente, com a insuficiência de ainda não encontrar palavras que deem conta de descrever tudo. Novas palavras hão de se inventar nesses tempos de ousadia e novidade. Sequer a escrita daria conta. E olha que muitas teses e artigos foram escritos, mas também muita poesia, performances, teatro, danças, vídeos, filmes, longas… narrados e contados por quem lutou e tomou a cena. Só quem viveu sabe.
Juventude, rebeldia e luta combinam demais com alegria, irreverência e arte. Nesse encontro, ouso-me contar um pouco sobre esse momento. Faço a escolha de costurar poeticamente essa espécie de ensaio autobiográfico e, ao olhar para mim, lanço olhar e caminho de mãos dadas com os meus. Não tenho, por estes passos, o pretensiosismo de ser porta-voz ou liderança desse fato. Afinal, tal atitude seria incompatível com os contornos da luta das ocupações, que enfrentou a lógica hierárquica do poder escolar e se firmou na radicalização do significado de democracia. Ou pior: incorrer no perigo de uma história única, como proferiu Chimamanda (2009).
Desejo, com estas poucas palavras, apenas refletir, provocar, poetizar, encantar para novos possíveis, contar, cantar, cruzar só mais uma história de luta. Ao colocar-me para verbalizá-la, faço dela memória viva — daquelas que não se arquivam, mas se põem em movimento —, um convite à ação. Como num corpo coletivo, dizer dessa história também é falar dos meus, de como Racionais (2002) já deram a letra, daqueles que nasceram “da ponte pra cá”. Do desejo dos meus, do ímpeto de luta que nos acompanha por uma vida inteira. De meninos e meninas que não se rendem aos que nos querem vendidos, anestesiados, empobrecidos material e intelectualmente. E que aprendem, mesmo sem saber, a atuar pelas “brechas” — essas brechas de que nos fala Rufino (2019), onde é possível escapar da rigidez das estruturas de poder, da colonialidade e do pensamento ocidental dominante. Para nós, isso significa intervir a partir dos espaços onde o sistema deliberadamente falha ou não alcança, criando possibilidades de existência, pensamento e criação que escapam à normatividade branca e eurocentrada. Trata-se, profundamente, de um gesto político, poético e espiritual de invenção e resistência da nossa gente.
Quando ocupamos as escolas, desafiamos autoridades, recusamos modelos impostos e reinventamos a escola a partir de nossos próprios modos de existir e de aprender. Revelamos um espaço atravessado por múltiplas forças, e não um local neutro. Nesse sentido, as ocupações podem ser interpretadas como um exemplo concreto de “atuar pelas brechas”: fissuras abertas pelas mãos, pelo sangue e suor de uma geração de secundaristas que, mesmo não sabendo, traz a força histórica do passado, presentificada nas lutas de um povo mobilizado pela esperança de um futuro melhor. Uma trinca no sistema, por onde ventilam os ares da revolução.
Esse ato coletivo, que colocou em prática uma pedagogia insurgente, baseia-se em saberes que nascem fora da norma ideológica dominante, da grade curricular e da autoridade oficial. As ocupações foram essa abertura para pensar a educação de outras maneiras: não lineares, não hierárquicas e fora da lógica da produtividade. Um espaço de exercício daquilo que nos humaniza — a imaginação e a criação.
Esse devaneio coletivo criativo, capaz de construir realidades, é um espaço vivo: a encruzilhada, um lugar do imprevisto, do possível e do impossível. Foi exatamente isso que os estudantes construíram nas ocupações.
“A escola é nossa”
Arrisco dizer que, se eu pudesse sintetizar um sentimento que nos acompanhou por toda essa trajetória — que, em si mesma, evidencia seu conteúdo político e nos fez resistir por tanto tempo —, foi a contraditória ideia de “a escola ser nossa”. Contraditória, afinal, porque foi justamente o sentimento de não pertencimento a esse modelo de escola que nos levou a ocupá-la. Longe de ser um ato de amor, muitos se rebelaram movidos pela aversão ao que a escola sempre representou. Mais tarde, depois de dez anos, entendi que esse “nossa” era muito mais a expressão da necessidade de preservação dos vínculos afetivos, que estavam ameaçados pela possibilidade de muitos saírem de suas escolas de origem, do que, necessariamente, um sentimento de “amor” pela escola. Afinal, quem ama aquilo em que não se reconhece?
O problema do pertencimento e da identidade em relação à escola não é recente. A escola pública não foi criada para acolher o potencial da cultura juvenil presente nas periferias como conhecimento transformador, tampouco para preparar os filhos da classe trabalhadora a se apropriarem intelectualmente de sua condição e, assim, transformar sua realidade. O que vemos é um esvaziamento do conhecimento humanístico, totalizante e crítico, em troca de um saber especializado e fragmentado, a serviço de uma lógica de mercado cada vez mais volátil e precarizada, que nos quer trabalhando de nove a doze horas por dia, entregando iFood de bicicleta.
As ocupações, ao reivindicarem pertencimento a uma escola que não foi feita para nós e ao questionarem o modelo de escola que temos até hoje, colocam em xeque, em última instância, a lógica neoliberal que vem pautando as políticas educacionais no período recente e que molda a escola como ela é. Desde a última reforma da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), passando pela Reforma do Ensino Médio, até as medidas de privatização e implementação de um modelo de gestão empresarial na qual observa-se a substituição do processo pedagógico pela plataformização do ensino.
Desse modo, pertencer é reivindicar uma educação popular pautada em uma pedagogia revolucionária, que garanta o direito de nossa gente de se apropriar do conhecimento sistematizado historicamente pela humanidade, com vistas à transformação consciente da própria realidade (SAVIANI, 2012). Somente assim será possível construir uma sociedade democrática e emancipada, capaz de lutar contra as correntes que nos aprisionam a uma forma moderna de escravidão material e intelectual.
Com as ocupações, recusamos o modelo imposto e reinventamos a escola a partir de nossos próprios modos de existir e de aprender. Para muitos, a ocupação significou um processo de “desalienação”, no qual a escola deixou de ser apenas um espaço de repetição de conteúdos e se transformou em um lugar de discussão e engajamento em torno de temas como ditadura, racismo, feminismo, política nacional e cultura — tudo isso conectado às demandas do território, mobilizando coletivos e grupos que atuam em nossos bairros.
Além disso, descobrimos a escola. Encontramos projetores que nunca haviam sido usados; livros ainda embalados; bolas guardadas enquanto quem utilizava a quadra não tinha com o que jogar; materiais de laboratório lacrados; papel higiênico estocado — itens que estavam muito distantes do banheiro feminino das estudantes —, entre tantas outras coisas que vieram à tona quando passamos a nos apropriar dos espaços que nos são historicamente negados. A escola abriu-se para a vida. As rodas de conversa, as aulas públicas e as manifestações culturais, como saraus e apresentações teatrais, contribuíram para ampliar nossa visão de mundo. Aprendemos muito mais nesses poucos dias de ocupação do que em anos de vida escolar.
A auto-organização e as assembleias diárias transformaram a maneira como os estudantes se viam. Já não éramos mais alunos sentados, enfileirados, passivos, esperando receber conhecimento. Estávamos ali como sujeitos ativos em um processo de transformação, de construção de agência e de produção de um novo espaço, no qual as decisões eram compartilhadas e as funções, rotativas, rompendo com qualquer forma de hierarquia ou distinção de valor entre tarefas. Questões antes naturalizadas em uma cultura machista passaram a ser questionadas. “Expulsar os meninos da ocupação não é o que a gente quer. A gente quer ensinar os meninos a como tratar uma menina.” Essa fala de uma secundarista, presente no documentário Lute como uma menina, retrata bem o protagonismo das meninas nas ocupações e a forma como as questões de gênero foram abordadas. Dentro das ocupações, não existiam “coisas de menina” ou “coisas de menino”. Todos, em algum momento, passavam pelas comissões de limpeza, segurança, programação cultural, comunicação ou alimentação. O que começou como resistência à política educacional acabou se transformando em uma verdadeira experiência de formação política, vivida no exercício prático de uma educação política.
Dois outros elementos acompanharam esse processo de pertencimento e apropriação da escola pelos estudantes: a unidade e a solidariedade. A unidade estava assentada não apenas no conteúdo da luta — a revogação da proposta —, mas também em sua forma: a ocupação. Integrar-se ao movimento significava, portanto, defender a revogação e aderir às suas estratégias de luta. Muitas escolas, mesmo não estando diretamente incluídas no plano de reorganização, foram ocupadas em solidariedade aos seus pares.
Cabe destacar que não apenas as comunidades escolares se mobilizaram, mas também indivíduos e coletivos que, mesmo sem ocupar suas próprias escolas, somaram-se ao movimento, integrando ocupações existentes, organizando vigílias, mobilizando artistas, arrecadando materiais, articulando a imprensa e posicionando-se nas redes sociais. Foi um período em que uma parcela significativa da sociedade se engajou na defesa da escola pública.
Naquele momento, assumimos, com responsabilidade, a luta do nosso tempo: unidade, coletividade e um objetivo comum. O Brasil viveu um de seus períodos mais efervescentes de mobilização política, demonstrando a força do movimento secundarista na defesa de outra escola pública. Ecoamos por todo o país um grito de esperança e de luta por democracia e participação popular, que ainda ressoa atualmente.
Certamente, lembro a vocês que não será apenas da sala de aula que mudaremos uma nação, mas posso afirmar também que não haverá qualquer mudança significativa que não passe por ela. O chão da sala de aula é um terreno onde podem ser assentados novos caminhos, e não há caminho verdadeiro que não conduza à emancipação do nosso povo.
Hoje são muitas as lutas herdadas por essa nova geração. Que vocês possam olhar para esse passado, extrair dele lições e aprendizados e seguir em frente. Um conselho? Assim como nas ocupações, não deixem jamais de imaginar e criar. Esse é o primeiro passo para inventarmos a escola e o Brasil que desejamos.
Referências Bibliográficas
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Palestra apresentada no TED Global, Oxford, 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wQk17RPuhW8. Acesso em: 3 dez. 2025.
BRANDÃO, Leci. Anjos da guarda. In: BRANDÃO, Leci (intérprete). Leci Brandão. Rio de Janeiro: RGE, 1986. 1 faixa.
RACIONAIS MC’S. Da ponte pra cá. In: RACIONAIS MC’S. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra, 2002. 1 faixa.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 42. ed. São Paulo: Autores Associados, 2012.
SCIENCE, Chico; NAÇÃO ZUMBI. Rios, pontes e overdrives. In: SCIENCE, Chico; NAÇÃO ZUMBI. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Chaos; Sony Music, 1994. 1 faixa.